Rosângela Rennó. Wedding Landscape. 1996. Gelatin silver negatives and acrylic, 44 3/4 × 58 1/2 × 1/2" (113.7 × 148.6 × 1.3 cm). The Museum of Modern Art, New York. Gift of Patricia Phelps de Cisneros through the Latin American and Caribbean Fund in honor of Sarah Hermanson Meister. © 2022 Rosângela Rennó

Rosângela Rennó não é fotógrafa, mas a fotografia é tanto sua matéria prima quanto seu assunto. Por mais de trinta anos, a artista brasileira tem se inspirado em arquivos esquecidos e fotos anônimas para criar obras de arte que trazem à tona histórias marginais. No final de 2021, a Pinacoteca do Estado de São Paulo realizou uma grande retrospectiva da artista, que está sediada no Rio de Janeiro. O trabalho de Rennó nos convida a permanecer nas superfícies e bordas desgastadas da modernidade tecnológica e nos propõe questões importantes: quem tem direito à visibilidade? Quem tem direito à opacidade? Como são construídas as narrativas históricas através da cultura visual? E que histórias esquecidas podem ser resgatadas?

Conversamos recentemente com Rennó sobre as origens distintas de suas cinco obras na coleção do MoMA, seus métodos de pesquisa e seus pensamentos sobre os regimes reacionários do Brasil passado e do presente. Esta conversa faz parte do Giving a Body to Time (Dando cuerpo al tiempo), uma série de entrevistas com artistas da América Latina cujas obras entraram no acervo do MoMA em 2017 como parte de 90 obras de arte contemporânea doadas por Patricia Phelps de Cisneros. Com um título que cita a artista brasileira Jac Leirner, a série se concentra em obras dos anos 80 e 90 que centram o corpo em práticas experimentais e conceituais, desafiando os parâmetros dos meios artísticos tradicionais. Dando corpo ao tempo é a terceira série de entrevistas que fazem parte da pesquisa de longo prazo sobre a doação de Cisneros ao museu.

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Elise Y. Chagas: Rosângela, você trabalha com fotografias encontradas, arquivos, álbuns, coleções institucionais, além de uma grande variedade de formatos e tecnologias de imagem. Como você descreveria sua abordagem histórica, teórica e prática da fotografia?

Rosângela Rennó: Eu costumo dizer que minha aproximação aos temas das humanidades, da história e seus apagamentos e à própria história da fotografia, e de seus usos e funções sociais parte sempre da imersão nas próprias imagens e coleções que encontro, tanto no Brasil quanto no exterior. A maneira de trabalhar é próxima à rotina do pesquisador, na medida em que meu envolvimento com um conjunto específico de imagens pressupõe uma pesquisa sobre sua origem, seu destino e das razões da sua existência. Na maioria das vezes, me interesso pelas coleções que de alguma maneira foram destinadas ao esquecimento como, por exemplo, nos arquivos mal classificados ou mal armazenados, à beira da destruição, ou arquivos colocados à venda em mercados de pulga ou mesmo encontrados no lixo. O abandono de uma imagem confere a ela um caráter ‘anônimo’, embora saibamos que toda foto tem uma autoria. Além disso, a imagem que foi descartada, não importa por qual razão, tem muito a revelar, talvez até mais do que uma fotografia devidamente classificada, cuja autoria é inequívoca. Ao buscar as razões do seu abandono ou esquecimento, creio conseguir compreender melhor a existência dessas imagens no mundo e conectá-las com alguma humanidade, através de aspectos políticos, éticos ou estéticos.

Rosângela Rennó, 2020

Rosângela Rennó, 2020

Rosângela Rennó. Paisagem de Casamento. 1996

Rosângela Rennó. Paisagem de Casamento. 1996

Madeline Murphy Turner: Paisagem de Casamento é uma das mais intrigantes de suas obras. A obra é uma coleção de negativos organizados como uma cachoeira de imagens suspensas entres duas placas de acrílico. Quais são as imagens que vemos? Onde você as encontrou?

RR: Em 1994 fui a Havana, Cuba, pela primeira vez, onde ganhei uma caixa inteira de negativos fotográficos realizados em um estúdio local. A caixa deveria ter uns 7 quilos. Os negativos em formato 120 e 35mm continham a documentação de cerimônias de casamento. A fotógrafa que administrava o estúdio me levou ao sótão e me disse para levar tudo o que quisesse, pois o estúdio não tinha mais interesse em guardar aquele material. Apenas uma cópia dos negativos era entregue ao cliente. Como o material fotográfico era muito escasso no país, sequer era cogitada a possibilidade de fazer uma nova cópia, posteriormente. Esse material não era submetido a nenhum tipo de classificação nem era guardado pelo nome do cliente, tornando-se inútil, um material que seria futuramente destinado ao lixo. Com este material criei algumas séries específicas, e duas peças especiais, a partir dos próprios negativos, uma das quais foi Wedding Landscape.

De maneira geral, todas as mulheres nos negativos estavam vestidas com vestidos de noiva mas nenhuma das cerimônias foi realizada em alguma igreja. A documentação seguia um certo protocolo que era o mesmo para todos os casais de noivos: foram realizadas em um ambiente clássico, fotos no sofá, fotos diante de um espelho, etc., todas culminando com a foto do casal, despedindo-se, dentro de um carro ou em cima de uma motocicleta. Não me lembro mais de quantos casais havia em cada rolo de negativo. O que me impressionou foi o fato de que a sequência de imagens era idêntica para todos os casais envolvidos, seguindo um modelo pré-estabelecido.

EYC: Como a obra se relaciona com o gênero de paisagem—que está no título—e o gênero de retrato?

RR:A repetição das cenas, a monotonia da documentação foi o que de fato me interessou, naquela coleção de negativos. Percebi que a quantidade de cenas seguindo um padrão de repetição poderia funcionar como uma espécie de textura e a disposição dessas tiras de negativos, entre placas de acrílico, sugeriria a sobreposição de planos, como numa paisagem. O formato grande leva o espectador, de início, a ver uma massa de pretos, cinzas e transparências, constituídas de detalhes indistintos. Mas ao se aproximar, percebe que há uma infinidade de ‘unidades’ que se repetem. Essa uniformidade foi justamente isto o que me levou a pensar numa grande paisagem, onde o retrato individualizado se perde na massa escura do conjunto. Quando estamos diante de uma paisagem alternamos nossa visão, ou nosso foco, para sua completude ou para seu detalhe aproximado.

MMT: O que os negativos, tais como os mostrados neste trabalho, revelam que as fotografias não o fazem?

RR: Dentro do princípio da fotografia analógica, os negativos e os diapositivos estabeleciam a conexão direta entre a imagem fotográfica e o objeto ou indivíduo representado. Hoje, na era digital, a transformação em bytes e pixels afasta a imagem da sua relação indicial com o objeto representado. Meu uso de negativos manifestava um desejo de manter essa conexão com as cenas do casamento reproduzidas no filme, e não reproduzir mais uma vez aqueles momentos documentados. Esse desvio dos fins costumeiros do negativo me possibilitou aproximar-me da ideia de uma paisagem congelada, constituída pelas inúmeras unidades, quase indistintas, confinadas entre as placas de acrílico.

Rosângela Rennó. Sem Título (Menino Vermelho). 1996

Rosângela Rennó. Sem Título (Menino Vermelho). 1996

MMT: Em Sem Título (Menino Vermelho) (1996), um trabalho da Série Vermelha (1996–2003), o “menino vermelho” do título é quase imperceptível. Você poderia falar sobre seu interesse pelos limites da percepção e a linha entre visibilidade e invisibilidade? Como é que este foco opera em relação ao seu interesse pela história do Brasil

RR: Nos anos 90, me engajei num projeto mais amplo de produzir ‘opacidades’ sobre as imagens fotográficas, principalmente sobre os retratos. Deixar a fotografia em um nível mínimo de visibilidade é forçar o espectador a procurar pela profundidade da imagem, investigando a sua superfície. Nesse processo, eu conto com a capacidade do espectador investir em suas próprias memórias para ‘completar’ aquilo que não consegue de fato ‘ver,’ naquela superfície.

Alguns trabalhos daquela década eram de fato muito conectados com a questão da precariedade dos nossos arquivos no Brasil e de uma certa ‘amnésia histórica’, que foi agravada por nossa ditadura de mais de vinte anos (1964–85) e que tem se repetido nas últimas décadas. A construção da história em nosso país se vale tanto de indícios fracos e documentos imprecisos, quanto de arquivos inteiros deliberadamente destruídos ou abandonados, pois muitas vezes não interessa que a história seja contada com fidedignidade. Como exemplos, temos muito poucos registros dos tempos coloniais; arquivos sobre a escravidão foram queimados para que a República nascesse sem máculas; arquivos e museus inteiros são abandonados até que um incêndio ou desabamento ou inundação dê cabo deles. Resumindo, se a destruição não ocorre intencionalmente, ela ocorre por negligência. Hoje reconheço a ideia de um projeto deliberado de ‘ignorância estrutural’, que conta com processos de leituras equivocadas e até o apagamento deliberado de imagens e documentos sobre fatos históricos específicos. Hoje, mais do que nunca, esse projeto renasce com força pela extrema direita que tenta criar e disseminar falsas narrativas, contando com a falta de um projeto educativo bem fundamentado.

Além da catarse e da memória coletiva, os relatos, as narrativas e os arquivos têm que existir e resistir, para que as próximas gerações não cometam os mesmos erros.

Rosângela Rennó

Rosângela Rennó. Sem Titulo (America e Cristo). c. 1996–98

Rosângela Rennó. Sem Titulo (America e Cristo). c. 1996–98

EYC: A fotografia tem servido há muito tempo aos propósitos de encarceramento e de vigilância (estou pensando no desenvolvimento da fotografia policial no século XIX através do trabalho de Alphonse Bertillon). Sem título (América e Cristo) e Double Crown são obras de séries maiores (Cicatriz e Vulgo, respectivamente) que apresentam fotografias provenientes do arquivo médico de uma penitenciária estadual em São Paulo. Qual foi seu interesse neste arquivo, e como você chegou a acessá-lo e trabalhar com ele?

RR: Fiquei sabendo da existência do acervo fotográfico do Museu Penitenciário Paulista através de um artigo de jornal em 1995. A minha primeira visita ao Museu me mostrou que a realidade estava muito distante de um acervo de um verdadeiro museu. Mais de 15.000 negativos de vidro estavam reunidos numa sala da Academia Penitenciária do Estado de São Paulo em caixas de papelão dispostas no chão, algumas parcialmente destruídas. Levei 9 meses para obter a autorização para organizar e higienizar parte deste material produzido na Penitenciária do Estado de São Paulo no início do século 20. A pesquisa histórica que iniciei me levou a constatar que essa vasta documentação nunca serviu para grande coisa, pois nunca foi preparada para ser pesquisada ou mesmo manuseada. A inexistência de uma finalidade primeira e essencial para aquela enorme coleção de negativos era algo que me parecia absurdo, beirando a surrealidade. Isso me apontou uma série de questões que se tornaram muito importantes em alguns projetos que vieram em seguida sobre a constituição e a manutenção dos arquivos históricos no Brasil e o projeto institucional de ‘ignorância estrutural’ no nosso país.

Entre os negativos de vidro do acervo do Museu Penitenciário Paulista havia a documentação de tatuagens, retratos de dupla-efígie (modelo criado por Bertillon), e fotografias de corpo inteiro, nu, dos presos. Estava claro que todo o sistema de documentação fotográfica desenvolvido nas penitenciárias do Estado de São Paulo servia para identificar o preso reincidente. Além disso, a documentação também sugeria uma aproximação com as teorias positivistas sobre comportamento criminal, criadas no século XIX. A partir da pesquisa realizada, escolhi alguns negativos de tatuagens e das cabeças dos presos, vistas por trás. O projeto aqui tratava de humanizar o ‘corpo fotográfico’.

EYC: Você pode dizer mais sobre esta idéia?

RR: Depois de ter trabalhado por alguns anos com fotografia vernacular e retratos para fins de identidade, a investigação no acervo do Museu Penitenciário Paulista abriu para mim um novo horizonte. Isso não foi apenas porque se tratava de uma outra categoria fotográfica, a ‘fotografia criminal', mas principalmente pelo ineditismo naquele ‘olhar’ de vigilância. Havia um cuidado nos enquadramentos que denotavam um certo grau de voyeurismo e sensualidade naquelas fotos, que era muito diferente da documentação clássica das tatuagens, tal como era feita no século XIX. O corpo retratado ali, daquela maneira, me levou a uma construção de sentidos que tentava trazer de volta uma humanidade retirada daqueles homens encarcerados.

Rosângela Rennó. Double Crown (da serie Vulgo). 1998

Rosângela Rennó. Double Crown (da serie Vulgo). 1998

Rosângela Rennó. Vulgo/Texto. 1998

Rosângela Rennó. Vulgo/Texto. 1998

EYC: Um projetor de vídeo sobre um tripé projeta os apelidos dos presidiários. O texto é rapidamente reproduzido em um pequeno pedaço de plexiglas com o ritmo de um caça-níqueis. Como foi realizado este trabalho?

RR: Passei mais de um ano colecionando apelidos de criminosos, que encontrava na seção policial dos jornais brasileiros. A coleção começou como mera curiosidade, como uma forma de pensar a ideia de anonimato, em contraste com a ideia de identificação através do retrato; especialmente a identificação criminal com a qual eu estava trabalhando nas fotos do Museu Penitenciário. Os apelidos em português brasileiro são, de forma geral, muito sugestivos pois evocam características muito peculiares dos indivíduos que se identificam através deles. Eu me divertia muito quando encontrava referências a dois apelidos diferentes atribuídos à mesma pessoa. A ideia era usar um dispositivo que sugerisse a geração de novos apelidos por meio de letras que se substituíssem ao infinito: um efeito de ‘geração espontânea’. Então o meio escolhido foi o vídeo, gerado a partir da animação das letras e palavras em AfterEffects. Ao todo são 500 apelidos, em loop. O projetor de vídeo mais portátil na época, era o Sony CPJ-200, que tem um formato redondo, eu decidi então acoplá-lo a um tripé e a estrutura completa se assemelhava a um pequeno robô, em escala humana, gerador de ‘identidades falsas’.

MMT: Referindo-se ao lugar da memória, você disse que seu trabalho não é aquele que “volta ao passado, mas aquele que protege histórias públicas e privadas, pequenas e grandes tragédias, tanto individuais quanto coletivas, no presente e no futuro”. Como você pensa a relação entre a memória e o arquivo, o pessoal e o institucional?

RR: Hoje, mais do que nunca, questionamos o valor da grande história, dos grandes feitos; a história é um organismo vivo, está em permanente releitura e reavaliação, sendo recriada por diferentes vieses, na tentativa de fazer com que as sociedades compreendam seus próprios erros estruturais. Não estou aqui nem considerando as falsas narrativas, bastante nocivas, mas estou considerando as novas narrativas que colocam em perspectiva histórias que sempre foram negligenciadas. A imagem de um assassinato ocorrido nos Estados Unidos foi viralizada pela internet acirrou o debate sobre o ‘racismo estrutural’ que persiste em países como os EUA e o Brasil. Parece que o assassinato ‘despertou’ também a população brasileira. Infelizmente, assassinatos como o de George Floyd são muito recorrentes no Brasil, ocorrendo numa base quase diária, mas nenhum deles teve ou tem o alcance necessário para provocar a transformação necessária. Em nosso país estamos demasiado acostumados e tornamos invisíveis esses episódios recorrentes de tragédias individuais. Além da catarse e da memória coletiva, os relatos, as narrativas e os arquivos têm que existir e resistir, para que as próximas gerações não cometam os mesmos erros.