A Jornada Transcendental de um Artista Amazônico
A obra de Roberto Evangelista incorpora tradições espirituais da Amazônia.
Ana Maria Evangelista, Gabriela Paiva de Toledo
Sep 24, 2024
Retrato de Roberto Evangelista, década de 1970. Acervo da Família Evangelista.
Roberto Evangelista nasceu em Cruzeiro do Sul, na Amazônia Brasileira, em 1946. Faleceu em Manaus, Brasil, em 2019. Na década de 1960, conheceu sua companheira, Ana Maria Evangelista, com quem compartilhou sua vida e trajetória espiritual. Em 1970, eles se converteram à União do Vegetal (UDV), religião reecarnacionista amazônica baseada no consumo da bebida enteógena Ayahuasca. Roberto se tornou mestre da UDV quatro anos depois, e Ana Maria, conselheira. 1
No mesmo período em que se converteu, Roberto começou a produzir objetos de arte, instalações e vídeos. Em suas palavras, suas obras eram feitas através do alcance de um maior nível de consciência pelo consumo do chá de Ayahuasca. O texto abaixo é baseado em três conversas entre Ana Maria Evangelista e a historiadora da arte Gabriela Paiva de Toledo entre agosto de 2023 e maio de 2024.
Este artigo é apresentado como parte do projeto de pesquisa em andamento do Instituto Cisneros Bridging the Sacred: Spiritual Streams in Twentieth Century Latin American and Caribbean Art, 1920–1970, que convida artistas e especialistas da América Latina e do Caribe a explorar a arte moderna e contemporânea em relação à espiritualidade, com foco particular nas tradições afro-diaspóricas, indígenas, ocultistas, judaicas e católicas.
—Gabriela Paiva de Toledo, art historian and Cisneros Research Fellow
This article is also available in English.
Ana Maria Evangelista e Roberto Evangelista, local desconhecido, década de 2020. Acervo da Família Evangelista.
É através da convivência que se aprendem certas coisas, compreendendo e compatilhando com o outro. Roberto e eu sempre compartilhamos a vida e as ideias. Nossa relação se baseava no diálogo aberto; de cada situação que despertasse um olhar diferente sobre as coisas vividas por um de nós, o outro participava. A arte era seu modo de lançar um olhar diferente sobre o mundo. Também, tornou-se um meio de projetar seu ímpeto de compartilhar este olhar, não somente comigo, mas também com outros.
Este desejo muitas vezes também envolvia o fazer das obras. Algumas obras se transformavam em um movimento coletivo, uma dança em família. Houve um trabalho − uma instalação que ele projetou para ocupar toda a galeria, composta por tapumes pintados e fotografias das paredes das casas de madeira dos ribeirinhos do Amazonas − da qual participamos todos.2 A sala da nossa casa virou um ateliê de pintura, com a participação de toda a família para compor as placas de madeira pintadas, que depois foram transportadas e montadas na galeria. Em outro trabalho, um vídeo experimental, Roberto filmou nossas filhas repetindo o gesto de pentear os cabelos.3
“Resgate,” happening realizado na Praia de Ponta Negra, Manaus, em Fevereiro de 1992 (Roberto está ao centro). Acervo da Família Evangelista.
Acompanhando toda a sua trajetória como artista, eu diria que a repetição é a espinha dorsal de sua obra. Desde seus primeiros trabalhos em arte instalação e vídeo nos anos 1970, ele utilizou cuias de cabaça, populares na Amazônia, e foi intensificando o uso desses objetos nas décadas seguintes. A cuia é um objeto simbólico conectado ao sagrado para os indígenas amazônicos. Na obra de Roberto, sua forma circular transcende em espiritualidade − o círculo é o eterno retorno das coisas e, também, os ciclos da humanidade. Assim, iniciava-se uma trajetória de compromisso ético e espiritual com a natureza.4
De certo modo, arte é repetição – de memória coletiva e experiências compartilhadas – por meio de uma nova situação. Penso que este seja o sentido da arte. Não sou artista, sou pedagoga. Sempre pensei que a melhor maneira de transmitir conhecimento é aquela que tem como veículo a arte. A arte produz uma ficção que reaviva experiências universais compartilhadas. Todo novo evento artístico ativa a memória coletiva. Neste sentido, a relação entre arte, o mito e sagrado reside neste potencial para a repetição eterna.
“Ritos de passagem,” instalação, caixas de sapato, sapatos usados, pedras lioz, areia, vidro, 1000X1000 cm, 23a. Bienal de São Paulo - Universalis (curadoria de Nelson Aguilar e Agnaldo Farias), 1996. Acervo da Família Evangelista.
Mestre Florêncio nos entregou nosso primeiro copo do Vegetal. Lembro de me sentir transportada para uma outra condição de consciência...Ao mesmo tempo, Roberto foi despertando a arte que já habitava seu íntimo.
Ana Maria Evangelista
Os questionamentos de Roberto sobre a repetição das coisas ao longo dos tempos, a reencarnação e o eterno retorno, intensificaram-se quando ele ingressou no curso de Filosofia na Universidade do Amazonas nos anos 1960. Ele sempre achou que a Floresta Amazônica guardava algo muito precioso. Foi então que leu o livro Despertar dos Magos, de Jacques Bergier e Louis Pauwels.5 Através desta livro, ele teve um encontro duplo: com o realismo fantástico, a mistura entre ficção e realidade que estaria presente na sua obra artística, e a Ayahuasca. Este encontro também estimulou questionamentos que eu já carregava comigo há muito tempo. Assim, decidi o acompanhar nesta busca.
Foi em novembro de 1970, quando participamos da nossa primeira sessão da União do Vegetal, que Mestre Florêncio nos entregou nosso primeiro copo do Vegetal.6 Lembro de me sentir transportada para uma outra condição de consciência, participando de um outro momento da vida, experienciando algo em comum com outros. Este foi um período de despertar da consciência. Ao mesmo tempo, Roberto foi despertando a arte que já habitava seu íntimo. Em suas próprias palavras, essa imersão no Ayahuasca lhe gerou uma nova conceituação transcendental da arte, através dos elementos da natureza e que estão no dia a dia do nosso povo.7
Roberto Evangelista montando a instalação “Resgate”, para a exposição "America: Bride of the Sun. 500 years of Latin America and The Low Countries”, Museu Real de Belas Artes da Antuérpia, Bélgica, 1992. Acervo da Família Evangelista
“Niká Uiícana, Homenagem a Chico Mendes”, instalação de Roberto Evangelista e Regina Vater para a exposição “Travels: Here and There” (com curadoria de Chris Dercon), Clock Tower Gallery - PS1 MoMA, 1989. Arquivos do MoMA.
Ele compreendia que, entre o humano e a natureza, existe um elo espiritual, uma continuidade existencial. Na natureza, ele encontrou a gênese da morfologia cognitiva que molda o mundo, e começou a observar sua repetição ao longo da história. Isto reverbera em toda sua obra, como, por exemplo, no seu primeiro vídeo experimental, Mater Dolorosa.8 Isto também surgiu da experiência religiosa: na União do Vegetal, era preciso pesquisar a floresta para compreender as circunstâncias que possibilitam o crescimento do cipó Mariri e da árvore Chacrona nativos, utilizados no preparo do chá (o Vegetal, como nós chamamos).
O Vegetal ensina sobre a união. Não é um, são dois que se tornam um – o Mariri e a Chacrona. Ele nos ensina que nenhuma potência ocorre sozinha, isoladamente, mas que a força criadora se produz a partir de encontros e combinações. Este princípio permeou nossas vidas e penetrou seu processo criativo. Fundamentou também o príncipio conceital de sua obra, através do uso das cuias, que ecoam os dizeres Niká Uiícana – na unidade residem muitos.9
Conforme dito a Gabriela Paiva de Toledo.
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Existem quatro graus hierárquicos na UDV, do mais alto grau ao menor são: o Quadro de Mestres, o Corpo do Conselho, o Corpo Instrutivo e o Quadro de Sócios.
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Trata-se da instalação “A Cor do Povo (homenagem cabocla a Mondrian)”, 2006, feita na Galeria do Largo em Manaus, com a curadoria de Óscar Ramos e Sergio Cardoso.
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Ana Maria se refere às filhas do casal, que participaram do vídeo experimental “Play Time, Infinitude” (1981). Juntos, Roberto e Ana Maria tiveram um filho, Marlo, e quatro filhas, Sâmara, Sarah, Luína e Luna.
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Roberto Evangelista empregou a cuia em muitos de seus trabalhos como, por exemplo, em Mano-Maná, Das Utopias I, instalação, 1976; Niká Uiícana, instalação, 1976; Mater Dolorosa, In Memoriam II, vídeo, 1978-9; Resgate, instalação e happening, 1992.
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Livro muito popular entre a geração da contracultura e o movimento hippie nos anos 1960, que fomentaram ideias New Age.
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Mestre Florêncio foi o fundador do primeiro Núcleo da UDV em Manaus em 1966.
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Declaração feita pelo artista em entrevista para o documentário “A Amazônia segundo Evangelista” (2011) de Gustavo Soranz.
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Trata-se do vídeo experimental “Mater Dolorosa in Memoriam II (Da criação e sobrevivência das formas)”, produzido no Lago do Arara, em 1978-9.
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Roberto Evangelista nomeou algumas de suas instalações com a expressão Niká Uiícana, que também aparece na narração de seu primeiro vídeo experimental, Mater Dolorosa in Memoriam II (1978-9). Segundo ele, a expressão vem da língua tukano, uma dentre as várias línguas faladas pelos povos indígenas do Alto Rio Negro, e significa “os que habitam a mesma casa”.
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